Procedimento entre pessoas vivas é realizado pela primeira vez na América Latina

O desejo de vivenciar a maternidade é um desafio para mulheres diagnosticadas com infertilidade uterina absoluta, condição que afeta uma em cada 500 mulheres, de acordo com dados da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). 

Impossibilitadas de gestar devido à ausência ou ao mau funcionamento do útero, essas mulheres passaram a enxergar uma nova possibilidade diante dos avanços na medicina reprodutiva nos últimos anos: o transplante de útero entre pessoas vivas.

Apesar de já consolidado em países como Suécia, Estados Unidos e República Tcheca, foi em agosto de 2024 que o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HCFM-USP) realizou o primeiro transplante de útero entre pacientes vivas na América Latina.

O procedimento envolveu uma paciente diagnosticada com a síndrome de Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser (MRKH), condição rara que provoca a ausência congênita do útero e parte do canal vaginal. O órgão foi doado pela irmã da receptora, marcando um avanço para a ciência dos transplantes de órgãos.

A cirurgia, comandada pelo doutor Luiz Augusto Carneiro D’Albuquerque, foi bem-sucedida. Segundo o médico, ambas as pacientes estão em ótimo estado de saúde, sendo que a receptora já apresentou ciclo menstrual, um indicativo de que o órgão transplantado está funcional. 

Como funciona o transplante de útero

O procedimento possibilita que a paciente possa tentar a primeira gravidez por meio da fertilização in vitro (FIV) após cerca de seis meses. Antes do transplante, os óvulos da receptora e o sêmen do marido foram coletados, e os embriões gerados estão congelados, aguardando o momento adequado para serem transferidos ao novo útero.

De acordo com as informações do HCFM-USP, o transplante de útero é uma cirurgia complexa e demorada, que requer uma preparação rigorosa. Para se candidatar, a receptora precisa estar em boas condições clínicas e ter embriões saudáveis prontos para implantar após o procedimento. 

Realizado o transplante, a paciente inicia o uso de imunossupressores para evitar a rejeição do órgão e é acompanhada de perto por uma equipe multidisciplinar. Nesse contexto, a pediatria pré-natal fica responsável pelo monitoramento das gestantes transplantadas, ajudando a ajustar os medicamentos imunossupressores para proteger a mãe e o bebê.

O transplante de útero é temporário. Segundo a Febrasgo, após a paciente gerar o número desejado de filhos, o órgão é removido através da histerectomia ou por descontinuação da imunossupressão, reduzindo os riscos associados ao uso prolongado de medicamentos imunossupressores.

A gravidez após o transplante uterino precisa de um planejamento cuidadoso, assim como para quem realiza um transplante hepático, de rim ou coração. A Sociedade Internacional das Enfermeiras de Transplantes (ITNS, na sigla em inglês) destaca que, em todos esses casos, é preciso que a paciente esteja com uma função estável do órgão transplantado, pressão arterial normal ou bem controlada, assim como níveis normais de glicose no sangue.

Impacto emocional e desafios 

Mais do que um avanço técnico, o transplante de útero representa uma mudança na vida de mulheres que enfrentam a impossibilidade de gerar um filho. A experiência de carregar e dar à luz uma criança é um desejo que transcende questões biológicas, atingindo aspectos emocionais e sociais. 

Como ressalta o diretor de Ginecologia do Hospital das Clínicas, Edmund Baracat, o procedimento é psicologicamente muito importante para essas pacientes, proporcionando-lhes a possibilidade de vivenciar a maternidade de forma plena. 

Contudo, o especialista explica que o acesso ao transplante ainda é restrito devido ao seu alto custo e à complexidade. Segundo ele, o processo é longo, e não se deve pensar em realizá-lo sem ter embriões de boa qualidade congelados.

A escolha entre doadoras vivas e falecidas também é um ponto de discussão entre especialistas, já que cada abordagem apresenta vantagens e riscos, conforme a Febrasgo. No caso de doadoras vivas, como familiares de primeiro grau, as chances de sucesso aumentam.

Por outro lado, a doação pós-morte tem a vantagem de abolir os riscos da doadora, mas existe a desvantagem do tempo de isquemia do órgão, que é maior e pode diminuir a

taxa de sucesso. Há, ainda, maior incidência de rejeição, o que pode exigir doses mais elevadas de medicamentos imunossupressores, trazendo os riscos associados a essas substâncias.

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